- Edison Veiga
- De Bled (Eslovêniapara a BBC News Brasil
Graças a uma guinada na alta cúpula do Vaticano, o religioso brasileiro Cícero Romão Batista (1844-1934), conhecido simplesmente como Padre Cícero ou Padim Ciço, pode se tornar santo em breve.
Uma santidade, aliás, já reconhecida pelo catolicismo popular, sobretudo do Nordeste brasileiro. Ali, é comum que o sacerdote, que morreu há 90 anos, seja invocado em rezas e promessas. Não raras vezes com o epíteto de “santo”. Santo Padre Cícero.
A reviravolta da Santa Sé é curiosa porque Padre Cícero não só ainda não foi canonizado como, de quebra, em vida foi banido pela própria Igreja.
Admirado por Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, e por outros cangaceiros, o religioso se tornou político — foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, no Ceará —, era próximo dos coronéis que ali atuavam e tem uma biografia recheada de controvérsias.
“Padre Cícero foi suspenso das ordens sacerdotais, por causa do ‘milagre da hóstia’, que teria sangrado na boca de uma beata. Tal fato foi questionado severamente pela Igreja, que o proibiu de exercer seu ministério sacerdotal”, afirma à BBC News Brasil o teólogo e escritor J. Alves, autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’.
Em entrevista à BBC News Brasil, o antropólogo e sociólogo Joaquim Izidro do Nascimento Junior, especialista em religiosidades populares e professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atribui à trajetória de Padre Cícero as controvérsias que recaem sobre ele.
“Um padre do nordeste brasileiro, de uma Igreja católica do século 19, que acreditou na manifestação de Jesus Cristo na boca de uma mulher pobre e negra e enfrentou a Igreja”, ressalta ele, lembrando que o religioso “passou sua vida tentando o apoio e o reconhecimento dessa manifestação, por parte da Igreja Católica” e “optou por se tornar político para demonstrar influências e conseguir reverter sua suspensão na própria Igreja”.
“São elementos que reforçam um acontecimento único e controverso por si só”, analisa o antropólogo. “O crescimento da cidade e, consequentemente, das peregrinações, abriram um fosso entre uma trajetória de um padre sertanejo e uma Igreja romana europeia, o que deu contornos dramáticos.”
O suposto milagre
Em 1º de março de 1889, Padre Cícero era um homem prestes a completar 45 anos e já gozava de experiência no sacerdócio — havia sido ordenado em 1870.
Popular pela eficaz e contagiante oratória, ferramenta de inflamados sermões, e pelo trabalho pastoral então inédito naquele carente sertão nordestino, ele celebrava missa em Juazeiro.
Na hora da comunhão, a hóstia recebida pela religiosa Maria de Araújo (1861-1914alegadamente se transformou em sangue — na boca da mulher. Na visão dos que acreditam: a prova de que aquele pão é o corpo de Jesus.
Seria um milagre.
Cabem aqui parênteses para explicar quem era essa mulher. Nascida do povoado de Tabuleiro Grande, ficou órfã logo cedo e teve uma adolescência difícil, trabalhando no artesanato e em uma olaria. Aos 22 anos, decidiu usar hábito como se fosse uma freira — para o povo, ela acabou sendo reconhecida como uma beata.
Acabou sendo acolhida pelo Padre Cícero, residindo em sua casa. De acordo com Gondim, o fato milagroso se repetiria “por mais 138 vezes, num período de quase dois anos”.
Encrencas com a cúpula da Igreja
A repercussão do suposto milagre, contudo, não caiu bem para o sacerdote responsável pela missa. Quando a notícia se espalhou, formou-se uma comissão na diocese para investigar o ocorrido — com a participação de dois médicos e um farmacêutico.
Em outubro de 1891, o grupo apresentou um relatório alegando que não havia explicação natural para o fenômeno.
Não satisfeito, o então bispo do Ceará Joaquim José Vieira (1836-1917nomeou outra comissão — para alguns biógrafos, com integrantes “de cartas marcadas”. O novo relatório concluiu que tudo não havia passado de embuste.
Padre Cícero foi suspenso do sacerdócio, impedido de celebrar missas e de ministrar sacramentos. A pena imputada a Maria de Araújo foi viver em clausura até o fim da vida.
O sacerdote chegou a ir até o Vaticano para buscar uma absolvição diretamente com o papa Leão 13 (1810-1903). De acordo com Lira, seu banimento era restrito à diocese do Ceará e, em qualquer outro local, “com a permissão do bispo, ele poderia exercer o sacerdócio”.
O antropólogo Nascimento Junior acredita que as chances dessa santificação são “enormes”. “Penso que será uma questão de tempo. Os novos homens da Igreja Católica parecem estar muito interessados”, diz.